Sobre as Origens da Crise da Razão
A influência tecnicista em educação talvez ainda seja mais forte que o desejável. Ela está inserida em uma estrutura mais ampla, na qual se descortina aquilo que é conhecido como crise da razão contemporânea.
Ainda somos marcados pela razão instrumental a qual submete e coloniza a razão comunicativa ( Habermas), isto é, a primeira pertence ao campo da técnica, é usada na organização das forças produtivas e não tem a mesma lógica que preside a razão vital, presente no mundo das experiências pessoais e da comunicação interpessoal. Não se trata de negar a importância da razão instrumental. Ao mesmo tempo em que ela é fundamental para o desenvolvimento da técnica, sua expansão a áreas que não lhe são própria, é preocupante.
Ao efetivar essa indevida “colonização” descaracteriza e desumaniza terrenos como o da educação, por exemplo. Compreender alguns aspectos históricos do tecnicismo, desde o empirismo, do próprio racionalismo, passando evidentemente pelo seu precursor, o positivismo, é provável que possa ser inserido nos esforços de compreendermos a nossa própria prática pedagógica.
Introdução
Com os mais diferentes enfoques a escola tradicional sofreu durante o século que passou inúmeras críticas. A ineficácia escolar deveria ser tributada a mesma não estar, na sua organização, em conformidade com o “moderno” modelo empresarial, ou seja, o modelo de racionalização típico do sistema de produção capitalista.
Mesmo que tenha se intensificada apenas no século XX (lembre-se o fordismo), foi no século anterior que a divisão do trabalho, com sua execução mais mecânica e fragmentada, obteve sua expressão teórica através de Frederick Taylor. Ele estabelece os parâmetros do método científico de racionalização da produção (o conhecido taylorismo). Com isso, os setores de planejamento se robustecem fazendo surgir uma crescente burocratização. No caso da educação brasileira, vale lembrar, que o taylorismo serviu de orientação para a tendência tecnicista predominante no período ditatorial a partir da segunda metade da década de 60. Na primeira parte desse trabalho analisaremos, a fim de melhor compreendê-lo, alguns aspectos históricos das raízes do tecnicismo e, num segundo momento, abordaremos suas possíveis novas “roupagens”.
Do Empirismo ao Tecnicismo
Qualquer instituição de ensino poderia ser definida como um lugar em que o conhecimento circula (bem ou mal). Mas…..o que é conhecimento? Qual a sua origem? De que maneira, conhecemos? Serão perguntas que não dizem respeito à nossa vidinha de sala de aula? Deveriam ser deixadas para uma área específica da filosofia?
Por entendermos que a resposta é negativa a todas as questões anteriores propomos um mergulho –mesmo que rápido- no intuito de pegarmos o “fio da meada”.
Os filósofos da Antiguidade e da Idade Média já se ocupavam com a questão do conhecimento, do ato de conhecer, com a relação que se estabelece entre a consciência que conhece e objeto conhecido. Foi apenas na Idade Moderna, no entanto, que a teoria do conhecimento passa a se constituir como campo específico entre as disciplinas. A invenção da subjetividade na Ciência significa que a realidade é vista desde então como um problema. Neste, passa a ser uma necessidade investigar sobre a origem do conhecimento (qual a sua fonte?) e sobre o critério de verdade (o que permite que reconheçamos o verdadeiro?) . A partir de então, o racionalismo e o empirismo se constituem como duas vertentes que marcarão a reflexão filosófica a respeito. Tanto um como outro fazem partem daquilo que podemos chamar de raízes epistemológicas da pedagogia burguesa. (Fontana, 2001, p. 77-91).
O inglês John Locke, mesmo influenciado pelo pensamento racionalista (de Descartes) segue outra via para resolver o problema do conhecimento. A conhecida alusão à alma como tabula rasa anuncia o fundamento de sua teoria: o conhecimento se dá pelo caminho sensível, pela experiência (a empeiría grega significa experiência). Em Locke, o material do pensamento se constitui das idéias, simples e complexas. A mente, como um papel em branco, imprime noções que passam a consubstanciar a própria mente. Existem duas fontes para nossas idéias: a sensação e a reflexão. A primeira resulta das modificações ocorridas na mente através dos sentidos. A segunda se reduz à experiência interna do resultado que a sensação produz.
Na clássica ótica binária de que o conhecimento se dá entre o sujeito cognoscente e o objeto conhecido, podemos dizer que, enquanto Locke enfatiza o papel do objeto, Descartes destaca o papel do sujeito no processo do conhecimento. Isso não significa que o empirismo descarta a razão mas que a subordina ao trabalho anterior da experiência. Da mesma maneira, o racionalismo não exclui a experiência sensível apenas a considera ocasião do conhecimento estando, portanto, sujeita a enganos.
O positivismo, herdeiro da concepção empirista, como se sabe, nasce com o francês Auguste Comte durante o século XIX. Antes de enfatizarmos aspectos de sua filosofia nos parece importante algumas considerações pontuais em torno de aspectos que influenciaram seu pensamento. Abbagnano chega a afirmar que o “positivismo é o romantismo da ciência” (1985, p. 117). Quando analisamos sua afirmação observamos que ela tem como suporte a tendência específica do romantismo em identificar o finito com o infinito, considerando o finito como a revelação e a realização progressiva do infinito. Isso tudo, no positivismo, seria transferido e realizado no seio da ciência. Esta é exaltada, apresento-se como a única manifestação legítima do infinito, assumindo, assim, um caráter religioso na sua pretensão de suplantar as religiões tradicionais. Ao mesmo tempo, o positivismo acompanha e promove o nascimento e a afirmação da organização técnico-industrial da sociedade, fundada e condicionada pela ciência. A garantia sobrenatural vigente até então, por ser considerada inútil e supersticiosa, deveria ser substituída pela colocação do infinito na ciência, encerrando nas formas desta, a moral, a religião, a política, a própria existência do homem. Aí está incluída, naturalmente, a educação (Fontana, 2001, p. 35). O homem de concepção positivista julgou ter encontrado na ciência uma espécie de “garantia infalível do seu próprio destino”.
A síntese da filosofia da história, primeiro aspecto básico do sistema comteano, é a sua conhecida “lei dos três estados”: o espírito humano e todas as ciências se desenvolvem em três fases distintas, ou seja, a teológica, a metafísica e a positiva. Na teológica, todos os fenômenos são explicados tendo como causas agentes sobrenaturais. Na metafísica, a causalidade divina é substituída por forças abstratas, inerentes às próprias coisas e, portanto, capazes de, por si próprias, engendrar os fenômenos. Já a fase positiva é aquela atingida na maturidade do espírito humano. Através da observação e do raciocínio, o homem pode descobrir as relações invariáveis que existem entre os fenômenos, ou seja, suas leis. E isto, claro, se estende para as relações sociais. O termo positivo, vale lembrar, designa o real, em oposição às explicações teológicas e metafísicas do mundo. São reais “os conhecimentos que repousam sobre fatos observados”. Fica evidente a influência decorrente da verdadeira exaltação provocada pelo avanço da ciência moderna, capaz de virar o mundo de ponta cabeça através de uma tecnologia cada vez mais eficaz. Não é à toa que o “saber é poder” tornava-se uma afirmação inquestionável.
O empirismo e o positivismo vão caracterizar no final do século XIX e no início do século XX a tendência naturalista que terá sua marca impressa no início da constituição do método das ciências humanas. Ao transferir o método experimental das chamadas ciências naturais e exatas para a análise dos fenômenos humanos (sociologia, psicologia, economia), tentava-se validar essas últimas como “ciências”.
Todo esse entusiasmo vai desaguar naquilo que conhecemos no campo da pedagogia como cientificismo. Nele, o único conhecimento válido é o científico. Logo, o método baseado na observação, experimentação e matematização (o “método científico”) é o único a ganhar validade em todos os campos do conhecimento humano.
Como herdeira do cientificismo encontramos a tendência tecnicista. O objetivo básico de uma instituição de ensino ancorada nessa tendência é seguir os ditames de um modelo empresarial de gerenciamento. Na metade do século passado, quando o escolanovismo frustrava de certa forma as esperanças nele depositadas, é que começa a se delinear a tendência tecnicista. O planejamento e a organização do trabalho pedagógico; parcelamento do trabalho com a especialização das funções; operacionalização dos objetivos; ênfase à utilização de recursos, tais como a instrução programada, máquinas e ensinar, ensino por computador e tele-ensino, entre outros; são alguns dos aspectos caracterizadores dessa tendência. No Brasil, ela foi introduzida no início da ditadura militar, prejudicando sobremaneira as escolas públicas que, ao contrário das escolas particulares, não tinham como “minimizar” os efeitos da reforma de ensino.
Tecnicismo: Novas Caras a Mesma Cara
Parece-nos que há algo de velho nas novas roupagens que tentam dar legitimidade ao que se deve e ao que não se deve estudar nas instituições escolares. Na chamada academia isso parece se agravar.
Ao se priorizar algumas discussões que seriam acadêmicas de outras que, por exclusão, seriam “não acadêmicas”.
Quando se associa a objetividade com a veracidade na ciência, ou seja, quanto mais “neutro” um conhecimento, mais “objetivo” portanto mais “científico”.
Os bancos de dados, as bibliotecas eletrônicas, o computador quando vistos como as únicas formas de sermos contemporâneos.
Quanto ao primeiro aspecto, nos parece que um grave equívoco é quando se expulsa a vida concreta das discussões por ela “não fazer parte da academia”.
Quanto aos conhecimentos “neutros”, “científicos” – e portanto, os únicos legítimos- vale lembrar, fizeram parte do esforço de Locke que justificava o arcabouço de sua epistemologia burguesa.
Quanto aos aspectos tecnológicos necessários a uma instituição de ensino, eles serão legitimados na medida em que libertarem o professor de suas funções de informação e repetição e lhe permitirem desempenhar melhor algo que lhe é próprio, ou seja, a interpretação, a discussão e a crítica das informações e do conhecimento.
Para que isso seja mais bem compreendido necessitamos sair muitas vezes de nossa condição de consciência solitária que se relaciona instrumentalmente com o mundo objetivo, com o mundo social e até com o mundo subjetivo (como nos lembra Rouanet). A mudança desse referencial estaria necessariamente vinculada a um trânsito da filosofia do sujeito para a filosofia comunicativa. Para incursionarmos na Modernidade seja defendendo-a, seja contestando-a, seja considerando-a um processo inconcluso e aí compreendermos a crise da razão, esse é um trajeto inevitável.
No caminho das reflexões de Habermas parece continuar sendo válido que só a razão pode libertar aquilo que foi oprimido pela razão. E aí, não teríamos um paradoxo pois não se trata da mesma razão. Aquela que oprime – a sistêmica – é diferente daquela que libera – a comunicativa. Claro que sua teoria não responde a todas as perguntas. Mas, como nos alerta Rouanet (1987), “se a trilha aberta por Habermas não fosse viável, talvez só nos restasse escolher entre a vertigem de um racionalismo aporético, a superficialidade de um positivismo míope, ou a aventura de um irracionalismo suicida”. Para a educação, e isso é bem provável, a apologia ao tecnicismo se insere na segunda escolha.
SOBRE AS ORIGENS DA CRISE DA RAZÃO: O CASO DO TECNICISMO
de: Hugo Antonio Fontana1
by pesquisa blog.msmacom.com.br
Ivair Ximenes Lopes
Bibliografia
ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. Lisboa : Editorial Presença, 1985.
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da educação. São Paulo : Moderna, 1989.
CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo : Editora da UNESP, 1999.
COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva. Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo. Catecismo positivista. São Paulo : Nova Cultural, 1988. Col. Os Pensadores.
_____ . Filosofia positivista. Lisboa : Editorial Presença, 1985.
DESCARTES, René. Meditações. São Paulo : Nova Cultural, 1988. Col. Os Pensadores.
FONTANA, Hugo Antonio. A expansão das instituições de ensino superior no Rio Grande do Sul (1950-2000): implicações filosóficas, históricas e sociológicas. Tese de doutorado, UFSM, 2001.
FREITAG, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. São Paulo : Brasiliense, 1994.
HABERMAS, Juergen. Der fhilosophische diskurs der moderne. Frankfurt : Suhrkamp Verlag, 1985.
ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo : Companhia das Letras, 1987.
______ . Teoria crítica e psicanálise. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1983